A arte é uma coisa bonita.. Nos ajuda a criar marcos, traduzir a vida, entender quem somos e o que sentimos. Tudo de um jeito que não conseguiríamos sozinhos.

Venho tentando entender esse luto que sinto. E tem sido uma luta. Em outros tempos, com certeza, teria guardado para mim. Não teria escrito a respeito em lugar nenhum, não teria deixado meus filhos me verem chorando, ainda que só uma vez. Mas, agora, me recuso a fazer isso. Não quero guardar. Não isso. Quero libertar essa sensação horrível. De vazio. De tristeza. De nó estrangulando tudo por dentro.

Sigo tentado esvaziar aos poucos. Deixando vazar e tentando não me afogar em mim mesma.

Todos os dias, volto um pouquinho a fita e paro em algum ponto. Coloco no “repeat” várias vezes e fico vendo a mesma cena, ouvindo os mesmos sons, esperando que sangre até coagular. Nem sempre consigo. Têm coisas muito tristes, especialmente nos últimos anos. Nos últimos dias. Às vezes, paro no meio e desligo ou alguém me interrompe (e agradeço).

Hoje, me escondi dos sons da casa e deixei tocar a música preferida dele. Fala sobre sacrifícios e pessoas que viviam em mundos diferentes. Meu pai nunca soube o que a letra significava e não precisou. Toda vez que ouvia essa música de Elton John ele parava tudo o que estava fazendo. Ficava tão concentrado e comovido que se irritava quando minha mãe se aproximava falando com ele. Ás vezes dizia: “me deixa escutar!”. Era engraçado e bonito ver que ele desejava estar sozinho para entrar naquele mundo onde só havia aquele som.

Acho que ele sempre foi assim. Sempre precisou de espaço. Sempre gostou de esconderijos. Sempre quis ter um tempo sozinho para se ouvir, se entender e se curar.

Nunca tinha pensado que herdei isso dele. Mas foi. E, quando não doer tanto, vou tentar descobrir tudo mais que meu pai deixou para mim.

Por enquanto, o que tenho feito é tentar fazer as pazes com tudo isso. Aceitar a perda. Pronunciar essa palavra tão devastadora em voz alta. Morte. Como consegue ser um soco tão forte no estômago mesmo tão pequena? Como é capaz de me destruir tantas vezes no mesmo dia, mesmo só repetida dentro da minha cabeça?

Tantas coisas para as quais não tenho resposta. E, sempre que isso acontece, procuro metáforas, frases, filmes, imagens… Muitas vezes, elas falam por mim, me dão conselhos e me trazem paz.

Hoje, ao ouvir “Sacrifice”, prometi que não vou tirá-la da minha playlist. Que não vou deixar de ouvi-la por medo, nem saudade. Ao contrário. Toda vez que eu sentir uma dessas coisas vou deixar que ela toque e vou me lembrar do meu pai. Essa música sempre será dele, embora eu tenha certeza de que sua vida e sua partida estão descritas em uma canção diferente, também do Elton John.

Uma ou duas semanas depois que ele se foi, entrei no Youtube buscando uma música que sempre me comoveu e que não entendia por quê. Digitei “Rocket Man” na busca e segundos depois, ele estava ali, na minha frente. Era como se alguém tivesse encontrado a forma mais bonita, triste e suave de contar a sua história. Tudo naquele clipe era sobre o meu pai. Acordar no meio da noite ou de madrugada com uma mala pequena feita pela minha mãe. Seu jeito de caminhar com passos de um metro e oitenta e dois. Sua expressão triste. A jornada imensa à sua frente para a qual ele não tinha certeza se estava preparado. Deixar para trás pessoas das quais não conseguiu se despedir… A música e as imagens contam a sua vida, mas também me explicam a sua morte.

Quase cinco meses depois e essa é a tradução mais completa do que sinto. De como imagino que ele esteja. Solto no espaço, entre dois mundos. Mergulhado em estrelas. Feliz e eufórico por ver tanta beleza, com vontade de “chegar logo” e fazer mil perguntas e, ao mesmo tempo, olhando para nós. Por nós. Querendo que a gente saiba que ele nos ama, sem precisar dizer.

É tudo isso, eu acho, mesmo sem saber. E, apesar de doer tanto assistir a essas imagens, estou encontrando as respostas do meu jeito. Estou encontrando minha forma de me curar. Tem sido Deus, minhas irmãs, minha mãe, meus (poucos) amigos, meus filhos e meu marido que estão fazendo os mais belos curativos, mas também têm sido a escrita e a arte. E, que bom, não preciso escolher. Posso ter tudo isso.

Que saudade, pai. Ainda não consigo escrever a carta que faltou. Aquela que planejei tantas vezes para suprir uma comunicação que já estava difícil. Eu falando pouco e baixo. Você quase sem ouvir (e teimando em não usar o aparelho auditivo). Vou tentar. Acho que é o que falta para eu soltar a sua mão e deixar que você vá. Eu sei, tô demorando demais. E de novo. Mas vou conseguir. Enquanto isso, saiba: o senhor não está sozinho. Como a Chris tem escrito sempre: “estamos aqui”.

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